Meditação do Frei Raniero Cantalamessa, OFMCap, Pregador da Casa Pontifícia.
Há um hino latino, não menos caro que o Adoro te devote à piedade eucarística do católico, que ilumina a ligação entre a Eucaristia e a cruz, o Ave verum. Composto no século XIII para acompanhar a elevação da Hóstia na Missa, ele se presta também para saudar a elevação de Cristo na cruz. São apenas cinco versos, carregados, porém, de muito conteúdo:
Salve! Verdadeiro corpo nascido de Maria Virgem!
Verdadeiramente sofrido e imolado pelo homem na cruz.
De teu lado transpassado brotou água e sangue.
Sede por nós o penhor no momento da morte.
Ó Jesus doce, ó Jesus piedoso, ó Jesus, filho de Maria!
O primeiro verso fornece a chave para compreender todo o restante. Berengario de Tours negou a realidade da presença de Cristo no sinal do pão, reduzindo-o a uma presença simbólica. Para tolher todo pretexto a esta heresia, começou-se a afirmar a identidade total entre o Jesus da Eucaristia e o histórico. O corpo de Cristo presente sobre o altar é definitivamente “verdadeiro” (verum corpus), para distingui-lo de um corpo puramente “simbólico” e também do corpo “místico” que é a Igreja.
Todas as expressões que seguiram se referindo ao Jesus terreno: nascido de Maria, paixão, morte, peito transpassado. O autor se prende nesse ponto; abstém-se de mencionar a ressurreição, porque isso poderia fazer pensar, de novo, em um corpo glorificado e espiritual, e, portanto, não suficientemente “real”.
A teologia volta-se hoje a uma visão muito equilibrada da identidade entre o corpo histórico e o eucarístico de Cristo e insiste em seu caráter sacramental, não material (embora real e substancial) da presença de Cristo no sacramento do altar.
Mas à parte desta diferente acentuação, resta intacta a verdade de fundo afirmada no hino. É o Jesus nascido de Maria em Belém, o mesmo que “passou fazendo o bem a todos” (Atos 10, 38), que morre na cruz e ressuscita no terceiro dia, aquele que está presente hoje no mundo, não como uma vaga presença espiritual, ou, como dizem alguns, a sua “causa”. A Eucaristia é o modo criado por Deus para permanecer para sempre o Emmanuel, o Deus Conosco.
Tal presença não é uma garantia e uma proteção só para a Igreja, mas para todo o mundo. “Deus é conosco!” Com o advento de Cristo tudo é transformado em universal. “Deus reconciliou o mundo consigo em Cristo, não imputando aos homens a sua culpa” (2 Cor 5, 19). O mundo inteiro, não uma parte; todos os homens, não só um povo. “Deus é conosco”, ou seja, da parte do homem, seu amigo e aliado contra a força do mal. É o único que personaliza tudo e só a face do bem contra a face do mal. Isto dava força a Dietrich Bonhffer, no cárcere e mesmo na sentença de morte por parte do “poder cativo” de Hitler, de afirmar a vitória do poder bom:
Da força amiga a maravilha envolve
vamos com calma ao futuro.
Deus está conosco de noite e de manhã,
Está conosco em tudo o que nasce.
“Não sabemos, escreveu o papa na Novo millenio ineunte, qual acontecimento que nos reserva o milênio que está iniciando, mas tenhamos a certeza que isso estará firmemente nas mãos de Cristo, o ‘Rei dos reis e Senhor dos senhores’ (Ap 19, 16)” .
Depois da saudação vem, no hino, a invocação: Esto nobis praegustatum mortis in examine, Sede por nós, ó Cristo, penhor e garantia de vida eterna na hora da morte. Já o mártir Inácio de Antioquia chamava a Eucaristia “remédio de imortalidade”, isto é, remédio para nossa mortalidade . Na Eucaristia temos “o penhor da glória futura”:” et futurae gloriae nobis pignus datur”.
Uma pesquisa revelou um fato original: que somos, mesmo entre os crentes, pessoas que crêem em Deus, mas não em uma vida após a morte. Mas como se pode pensar uma coisa desta? Cristo, diz a Carta aos Hebreus, morreu para obter “uma redenção eterna” (Hb 9, 12). Não temporária, mas eterna!
Faz-se objeção que ninguém retornou do outro lado para assegurar que isso existe verdadeiramente e não é, portanto, uma pia ilusão. Não é verdade! Há um que hoje em dia volta do outro lado para assegurar e renovar a sua promessa, se soubermos escutá-lo. Aquele verso ao qual somos direcionados que vem ao encontro da Eucaristia para dar uma amostra (praegustatum!) do banquete final do reino.
Devemos gritar ao mundo esta esperança para ajudar a nós mesmos e os outros a vencer o horror que causa a morte e reagir ao triste pessimismo que se espalha sobre nossa sociedade. Multiplica-se o diagnóstico desesperado sobre o estado da Terra: “um formigueiro que se desmancha”, “um planeta que agoniza”... A ciência traça com sempre maiores detalhes, o possível cenário da dissolução final do cosmo. A terra e os outros planetas se resfriarão, o sol e as outras estrelas se resfriarão, todas as coisas congelarão... Diminuirá a luz e aumentarão no universo os buracos negros... A expansão um dia se exaurirá e começará a contração e ao fim se assistirá ao colapso de toda a matéria e de toda energia existente em uma estrutura compacta de densidade infinita. Acontecerá agora o “Big Crunch”, a grande implosão, e tudo retornará ao vazio e ao silêncio que precedeu a grande explosão, o Big Bang, de quinze bilhões de anos atrás...
Ninguém sabe se as coisas acontecerão realmente assim ou de outro modo. A fé, porém, se assegura que, ainda que assim fosse, não será o fim total. Deus não reconciliou o mundo a si para abandoná-lo ao nada; não prometeu de permanecer conosco até o final do mundo, para depois se retirar, sozinho, no seu céu, no momento em que este fim vier. “Amei-te com amor eterno”, disse Deus ao homem na Bíblia (Jr 31, 3), e as promessas de “amor eterno” de Deus não são como das do homem.
Prosseguindo idealmente a meditação do Ave verum, o autor do Dies irae eleva a Cristo uma tocante oração que neste dia podemos torná-la nossa: ”Recordare, Iesu pie, quod sum causa tuae viae: ne me perdas illa die”: Recordai-vos, ó bom Jesus, que por mim subistes a cruz: não permitais que me perca nesse dia. ”Quarens me sedisti lassus, redemisti crucem passus: tantus labor non sit cassus”: “Ao aproximar-me, sentastes um dia cansado ao poço de Siquém e subistes na cruz para redimir-me: tanta dor não seja em vão”.
O Ave verum termina com uma exclamação direta à pessoa de Cristo: “O Iesu dulcis, o Iesu pie”. Esta palavra que mostra uma imagem excelentemente evangélica de Cristo: O Jesus “doce e bom”, isto é, clemente, compaixão que não quebra a cana rachada e não extingue a chama fumegante (cf. Mt 12,20). O Jesus que um dia disse: “Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração” (Mt 11, 29). A Eucaristia prolonga na história a presença desse Jesus. Esse é o sacramento da não violência!
A imitação de Cristo não justifica, porém, certamente soará agora muito estranho e odioso, a violência que se registra no confronto de sua pessoa. Foi dito que, com seu sacrifício, Cristo deu fim ao perverso mecanismo do cordeiro expiatório, sofrendo ele mesmo as conseqüências. Necessita ser dito com tristeza que tal perverso mecanismo está novamente agindo contra Cristo, em uma forma até agora desconhecida.
Contrariamente a ele se ventila todo o rancor de um certo pensamento laicista pela recente manifestação de aliança entre a violência e o sagrado. Como costuma acontecer no mecanismo do cordeiro expiatório, seleciona-se o elemento mais fraco para aplicar-se contra ele. “Fraco”, aqui, no sentido em que se pode desfazer impunemente, sem correr algum perigo de represália, havendo os cristãos desse tempo renunciado a defender a própria fé com a força.
Não se trata só da pressão para remover o crucifixo dos lugares públicos e o presépio do folclore natalino. São lançados sem parar romances, filmes e espetáculos nos quais se manipula ao bel prazer a figura de Cristo sobre uma quantidade de fantasias e inexistentes novos documentos e descobertas. Está-se criando uma moda, uma espécie de gênero literário.
É sempre presente a tendência de revestir Cristo das roupas da própria época ou da própria ideologia. Mas, ao menos no passado, por quanto discutível, havia causas sérias e de grande alcance: O Cristo idealista, socialista, revolucionário... a nossa época, obcecada pelo sexo, não sabe agora representar Jesus se não como um gay ante litteram ou alguém que prega que a salvação vem da união com o princípio feminino e nos dá o exemplo casando-se com Madalena.
Eles se apresentam como os cavaleiros da ciência contra a religião: uma reivindicação surpreendente a julgar como é tratada nesse caso a ciência histórica! A história muito fantasiosa e absurda vindo cobrar e beber de muitos como se tratasse de história verdadeira, ao invés disso, da única história finalmente livre da censura eclesiástica e tabu. “O homem que não crê em Deus está pronto a crer em tudo”, disse alguém. Os fatos estão dando razão.
Especula-se sobre a ressonância vastíssima que tem o nome de Jesus e sobre o que isso significa para grande parte da humanidade, para assegurar-se uma certa popularidade e boas vendas ou fazer sensacionalismo, com mensagens publicitárias que abusam dos símbolos e imagens evangélicas. (Aconteceu recentemente com a imagem da Última Ceia). Mas isto é parasitismo literário e artístico!
Jesus é vendido de novo por trinta denários, escarnecido e revestido de fantasias como no pretório. (Em um espetáculo transmitido em janeiro passado em uma televisão estatal européia Cristo aparecia na cruz recoberto com uma fralda de criança!). E depois eles se escandalizam e reclamam da intolerância a da censura se os crentes reagem enviando cartas e telefonemas de protesto aos responsáveis. A intolerância do tempo mudou de campo no Ocidente: da intolerância religiosa passou-se à intolerância da religião!
“Ninguém, argumenta-se, tem o monopólio dos símbolos e das imagens de uma religião”. Mais ainda que os símbolos de uma nação --o hino, a bandeira-- são de todos e de ninguém; É por isso que se pode escarnecer e se desfrutar ao bel prazer?
O mistério que celebramos neste dia nos proíbe de abandonar-nos a complexos de perseguição e levantar de novo muros ou bastões entre nós e a cultura (ou in-cultura) moderna. Talvez devamos imitar nosso Mestre e dizer simplesmente: «Pai, perdoa-os porque não sabem o que fazem». Perdoa-os e a nós, porque é certamente também por causa de nossos pecados, presentes e passados, que tudo isto sucede e se sabe que freqüentemente é para golpear os cristãos e a Igreja que se golpeia a Cristo.
Permitimo-nos só dirigir a nossos contemporâneos, em nosso interesse e no seu, o chamado que Tertuliano fazia em seu tempo aos gnósticos inimigos da humanidade de Cristo: «Parce unicae spei totius orbis»: não tireis do mundo sua única esperança [4].
A última invocação do Ave verum evoca a pessoa da mãe: «O Iesu filii Mariae». Duas vezes é recordada, no breve hino, a Virgem: ao princípio e ao final. Pelo demais, todas as exclamações finais do hino são uma reminiscência das últimas palavras da Salve Rainha: «O clemens, o pia, o dulcis virgo Maria», Ó clemente, ó piedosa, ó doce, Virgem Maria.
A insistência no vínculo entre Maria e a Eucaristia não responde a uma necessidade só devocional, mas também teológica. Nascer de Maria foi, em tempo dos Padres, o argumento principal contra o docetismo que negava a realidade do corpo de Cristo. Coerentemente, este mesmo nascimento testifica agora a verdade e realidade do corpo de Cristo presente na Eucaristia.
João Paulo II conclui uma carta apostólica Mane nobiscum Domine remetendo-se precisamente às palavras do hino: «O Pão eucarístico que recebemos --escreve-- é a carne imaculada do Filho: “Ave verum corpus natum de Maria Virgine”. Que neste Ano de graça, com a ajuda de Maria, a Igreja receba um novo impulso para sua missão e reconheça cada vez mais na Eucaristia a fonte e o cume de toda sua vida».
Ave verum corpus natum de Maria Virgine
Vere passum, immolatum in cruce pro homine
Cuius latus perforatum fluxit aqua et sanguine
Esto nobis praegustatum mortis in examine
O Iesu dulcis, o Iesu pie, o Iesu fili Mariae !
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