Ao celebrarmos a Imaculada Conceição da Virgem Maria e os cento e cinqüenta anos da proclamação do dogma, é oportuno compreender o significado da doutrina do pecado original, pecado do qual a Virgem foi isenta desde o primeiro momento de sua existência.
Antes de tudo, é necessário compreender bem que somente poderemos ter uma noção do pecado e da sua gravidade quando possuímos uma noção da grandeza do amor que Deus nos concedeu e ao qual nos chamou em Jesus Cristo. É contemplando a cruz que poderemos ter uma idéia do quanto o pecado atingiu toda a humanidade e do quanto ele é danoso e trágico. Então, não é primeiramente o Gênesis que nos revela o pecado, mas o fato de Jesus ter amorosamente morrido por todos nós para nos libertar de uma situação de escravidão: “Todos pecaram e todos estão privados da glória de Deus e são justificados gratuitamente, por sua graça, em virtude da redenção realizada em Cristo Jesus (Rm 3,23). O pecado original é aquela situação de atoleiro no qual a humanidade se encontra, da qual não pode sair por si mesma e da qual somente Cristo nos pode arrancar: “Eu sou carnal, vendido como escravo ao pecado. Realmente, não consigo entender o que faço; pois não pratico o que quero, mas faço o que detesto. Na realidade, não sou eu mais o que pratico a ação, mas o pecado que habita em mim. Infeliz de mim! Quem me libertará desse corpo de morte? Graças sejam dadas a Deus, por Jesus Cristo Senhor nosso” (Rm 7,14s.24s).
Contemplando o Cristo que necessitou morrer por todos (cf. Lc 24,26), podemos, agora, pensar no mistério do pecado. Primeiro distingamos pecado original originante e pecado original originado. Pecado original originante seria aquele primeiro “não” que a humanidade disse a Deus. Não sabemos como foi esse “não”. A Escritura diz-nos somente, numa linguagem poética, que o homem, criado livre, desde o primeiro momento de sua existência quis ser seu próprio Deus, quis ser sua própria norma, decidindo por si mesmo o que é bom e o que é mau. Este primeiro pecado gerou uma corrente, um clima de pecaminosidade. Essa situação de desarrumação, de quebradura, iniciada com o primeiro pecado, deu origem à situação de pecado que existe no mundo – o pecado original originado. É neste atoleiro, nesta situação de pecado que passa de geração a geração, que nascemos: “Minha mãe já concebeu-me pecador” (Sl 50/51,7).
Compreendamos bem: não é que nossos primeiros pais pecaram e Deus, zangado, de modo arbitrário e injusto, nos culpa pelo pecado. A coisa é bem outra, bem mais profunda e trágica: o pecado de nossos antepassados vai criando um clima poluído de maldade, de sorte que todo ser humano já nasce marcado por isso. Sabemos que ninguém começa a existência do zero: herdamos os traços físicos, psíquicos, culturais de nossos antepassados e de nossa sociedade. Ora, é esta situação tristemente marcada pelo “não” a Deus, que nos marca desde o ventre materno: nascemos feridos, nascemos com uma natureza humana doente... num mundo que já não é aquele com o qual Deus havia sonhado. Basta que olhemos para nós mesmos e constataremos isso: nossas contradições, incoerências e quebraduras interiores... Uma criancinha recém-nascida já é quebrada assim... e vamos acrescentando mais maldade a esta realidade má com os nossos pecados pessoais.
Pois bem, é desta situação triste que Cristo no liberta: “Assim como pela falta de um só resultou a condenação de todos os homens, do mesmo modo, da obra de justiça de um só, resultou para todos os homens a justificação que traz a vida” (Rm 5,18). Este primeiro homem que pecou, este Adão, é imagem de toda a humanidade, dos nossos primeiros pais. Não é necessário imaginar Adão como sendo um indivíduo: Adão e Eva são símbolos de toda a humanidade em suas origens, humanidade que disse “não” a Deus, iniciando esta triste situação na qual nos encontramos. No entanto, a misericórdia de Deus, revelada em Jesus Cristo, é mais forte que a situação do nosso pecado: “Não acontece com o domo mesmo que com a falta. Se pela falta de um só todos morreram, com quanto maior profusão a graça de Deus e o dom gratuito de um só homem, Jesus Cristo, se derramaram sobre todos” (Rm 5,15). Note-se que o pensamento de São Paulo é cheio de otimismo e esperança: se é verdade que existe uma força de pecado que estraga o mundo e a humanidade, também é muito mais verdade que a graça de Cristo quebra essa força e superabunda, “pois onde avultou o pecado, a graça superabundou” (Rm 5,20). Então, se nascemos marcados por uma força negativa que nos precede e está disseminada no mundo, também nascemos com a oferta da salvação, dada por aquele que nem perguntou se eu queria o seu amor: ele me amou e na cruz entregou-se por mim! Todo homem nasce, então, marcado pelo pecado e marcado pela graça de Cristo. Cabe-lhe uma escolha: viver num ou noutro domínio.
Quanto à Virgem Santíssima, a fé nos ensina a crer piedosamente que, desde o primeiro instante de sua concepção, por pura graça de Deus que previamente sabe dos méritos da cruz do Filho da Virgem, a preservou dessa solidariedade maldita com nossa situação de pecado. Enquanto a cruz e ressurreição de Cristo nos arranca da lama do pecado, não deixou sequer que sua Mãe fosse tocado por tal lama. Assim, a Virgem ainda foi mais salva que nós, deve a Cristo ainda mais que nós; ela é a Perfeita Redimida! Mas, São Paulo não afirma que todos pecaram? Como afirmar que a Virgem foi preservada do pecado? Primeiro, São Paulo fala em tese, para mostrar a necessidade que todos têm da salvação de Cristo. A questão da Virgem não passa aqui pela cabeça dele. Segundo: ainda assim, a fé católica não nega a afirmação do Apóstolo: sem a graça de Cristo, Nossa Senhora seria uma pobre pecadora! É em previsão da graça da cruz do Senhor que ela foi salva!
A Imaculada Conceição de Maria Virgem é aurora da salvação que o Cristo Senhor nos trouxe. Ele é como o sol que, antes mesmo de nascer, já faz sua luz romper a aurora! Esta aurora é a Santíssima e Toda Santa Mãe do Cristo, nosso Deus, libertada da culpa original!
Dom Henrique Soares da Costa
Bispo Auxiliar de Aracajú
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