INTRODUÇÃO AO ESPÍRITO DA LITURGIA
por Mons. Guido Marini
Mestre de Cerimônias das Celebrações Litúrgicas do Papa
Não há dúvidas de que uma discussão que se proponha a ser uma introdução autêntica ao espírito da liturgia não pode silenciar quanto ao assunto música sacra ou litúrgica.
Limitar-me-ei a uma breve reflexão para orientar a discussão. Poderia-se pensar por que a Igreja, através de seus documentos, mais ou menos recentes, insiste em indicar um certo tipo de música e canto como particularmente consonantes com a celebração litúrgica. Já no Concílio de Trento a Igreja interveio no conflito cultural que se desenvolvia na época, restabelecendo a norma pela qual a conformidade da música com o texto sagrado era de suma importância, limitando o uso de instrumentos e indicando uma clara distinção entre música profana e sacra. A música sacra, inclusive, não pode mais ser entendida como expressão de pura subjetividade. Ela está ancorada nos textos bíblicos ou da Tradição que devem ser cantados durante o curso da celebração. Mais recentemente, o Papa São Pio X interveio de maneira análoga, procurando remover o canto operístico da liturgia e selecionando o canto Gregoriano e a polifonia do tempo da contra-reforma Católica como o padrão para a música litúrgica, distinguindo-a assim da música religiosa em geral. O Concílio Vaticano II não fez nada além de reafirmar o mesmo padrão, assim como os documentos magisteriais mais recentes.
Por que a Igreja insiste em propor certas formas como características da música sagrada e litúrgica, fazendo-as distintas de todas as outras formas de música? Por que, também, o canto Gregoriano e a polifonia sagrada clássica se tornaram as formas exemplares, à luz das quais a música litúrgica e mesmo a popular deveriam continuar a ser produzidas hoje?
A resposta a estas questões reside precisamente naquilo que procuramos discorrer a respeito do espírito da liturgia. São propriamente aquelas formas de música – em sua santidade, bondade e universalidade – que traduzem em notas, melodias e canto o autêntico espírito litúrgico: levando à adoração do mistério celebrado, favorecendo uma participação autêntica e integral, ajudando o ouvinte a perceber o sagrado e, logo, a primazia essencial de Deus agindo em Cristo, e finalmente permitindo um desenvolvimento musical que esteja ancorado na vida da Igreja e na contemplação de seu mistério.
Permitam-me uma última citação de Joseph Ratzinger: “Gandhi destaca três espaços vitais no cosmos e mostra como cada um deles comunica seu próprio modo de ser. Os peixes vivem no mar e são silenciosos. Os animais terrestres gritam, mas os pássaros, cujo espaço vital é o céu, cantam. O silêncio é próprio do mar, gritar é próprio da terra, e cantar é próprio do céu. O homem, entretanto, participa dos três: ele leva em si a profundidade do mar, o peso da terra e a altura dos céus; é por isto que todos os três modos de ser pertencem a ele: silêncio, grito e canto. Hoje... vemos que, despojado da transcendência, tudo o que resta ao homem é gritar, porque ele deseja ser somente terra e busca transformar em terra mesmo os céus e a profundeza do mar. A verdadeira liturgia, a liturgia da comunhão dos santos, lhe restitui sua totalidade. Ela o ensina de novo como ser silencioso e como cantar, abrindo para ele as profundezas do mar e ensinando-o novamente a voar, a natureza de um anjo; elevando seu coração, faz ressoar nele mais uma vez aquela canção que tinha de certo modo adormecido. De fato, podemos mesmo dizer que a verdadeira liturgia é reconhecível especialmente quando nos liberta da forma comum de viver, e nos restaura as profundezas e as alturas, silêncio e canção. A verdadeira liturgia é reconhecível pelo fato de ser cósmica, e não feita sob medida para um grupo. Ela canta com os anjos. Ela permanece em silêncio com as profundezas do universo em espera. E desta forma ela redime o mundo.” (Cantate al Signore un canto nuovo, pp. 153-4)
Concluo. Já há alguns anos, várias vozes têm sido ouvidas dentro da Igreja falando sobre a necessidade de uma nova renovação litúrgica. De um movimento, de alguma forma análogo àquele que formou as bases para a reforma promovida pelo Concílio Vaticano II, que seja capaz de operar uma reforma da reforma, ou melhor, um passo adiante no entendimento do autêntico espírito da liturgia e de sua celebração; seu objetivo seria levar a cabo aquela providencial reforma da liturgia que os Padres conciliares iniciaram mas que nem sempre, em sua implementação prática, encontrou um cumprimento oportuno e feliz.
Não há dúvidas de que nesta nova renovação litúrgica somos nós sacerdotes que devemos recuperar um papel decisivo. Com a ajuda de Nosso Senhor e da Bem Aventurada Virgem Maria, mão de todos os sacerdotes, possa este desenvolvimento ulterior da reforma também ser o fruto de nosso sincero amor pela liturgia, em fidelidade à Igreja e ao Santo Padre.
São Tomás de Aquino e a Missa de Corpus Christi
Corria
o ano de 1264. O Papa Urbano IV mandara convocar uma seleta assembleia
que reunia os mais famosos mestres de Teologia daquele tempo. Entre eles
encontravam-se dois varões conhecidos não só pelo brilho da
inteligência e pureza da doutrina, mas, sobretudo, pela heroicidade de
suas virtudes: São Tomás de Aquino e São Boaventura.
A
razão da convocatória relacionava- se com uma recente bula Pontifícia
instituindo uma festa anual em honra do Santíssimo Corpo de Cristo. Para
o máximo esplendor desta comemoração, desejava Urbano IV que fosse
composto um Ofício, bem como o próprio da Missa a ser cantada naquela
solenidade. Assim, solicitou de cada um daqueles doutos personagens uma
composição a ser-lhe apresentada dentro de alguns dias, a fim de ser
escolhida a melhor.
Célebre
tornou-se o episódio ocorrido durante a sessão. O primeiro a expor foi
Frei Tomás. Serena e calmamente, desenrolou um pergaminho e os
circunstantes ouviram a declamação pausada da Sequência por ele
composta:
Lauda Sion Salvatorem, lauda ducem et pastorem in hymnis et canticis (Louva, Sião, o Salvador, o teu guia, o teu pastor com hinos e cânticos) ... Maravilhamento geral.
Frei Tomás concluiu: ...tuos ibi commensales, cohæredes et sodales, fac sanctorum civium (admiti-nos no Céu, à Vossa mesa, e fazei-nos coherdeiros na companhia dos que habitam a Cidade Santa).
Frei
Boaventura, digno filho do Poverello, rasgou sem vacilações sua
composição, e os demais o imitaram, rendendo tributo ao gênio e à
piedade do Aquinate. A posteridade não conheceu as demais obras, sem
dúvida sublimes também, mas imortalizou o gesto de seus autores,
verdadeiro monumento de humildade e despretensão.
Origem da festa de "Corpus Christi"
Vários
motivos haviam conduzido a Sé Apostólica a dar esse novo impulso à
piedade eucarística, estendendo a toda a Igreja uma devoção que já se
praticava em certas regiões da Bélgica, Alemanha e Polônia. O primeiro
deles remonta à época em que Urbano IV, então membro do clero de Liège,
na Bélgica, analisou de perto o conteúdo das revelações com as quais o
Senhor Se dignara favorecer uma jovem religiosa do mosteiro agostiniano
de Mont Cornillon, próximo a essa cidade.
Em
1208, quando contava apenas 16 anos, Juliana fora objeto de uma
singular visão: um refulgente disco branco, semelhante à lua cheia,
tendo um dos seus lados obscurecido por uma mancha. Após alguns anos de
intensa oração, fora-lhe revelado o significado daquela luminosa "lua
incompleta": ela simbolizava a Liturgia da Igreja, à qual faltava uma
solenidade em louvor ao Santíssimo Sacramento. Santa Juliana de Mont
Cornillon fora por Deus escolhida para comunicar ao mundo esse desejo
celeste.
Mais
de vinte anos se passaram até que a piedosa monja, dominando a
repugnância proveniente de sua profunda humildade, se decidisse a
cumprir sua missão, relatando a mensagem que recebera. A pedido seu,
foram consultados vários teólogos, entre o quais o padre Jacques
Pantaléon - futuro Bispo de Verdun e Patriarca de Jerusalém -, e este
mostrou- se entusiasta das revelações de Juliana.
Transcorridas
algumas décadas, e já após a morte da santa vidente, quis a Divina
Providência que ele fosse elevado ao Sólio Pontifício, em 1261, tomando o
nome de Urbano IV.
Encontrava-se
esse Papa em Orvieto, no verão de 1264, quando chegou a notícia de que,
a pouca distância dali, na cidade de Bolsena, durante uma Missa na
Igreja de Santa Cristina, o celebrante - que passava por provações
quanto à presença real de Cristo na Eucaristia - vira transformar- se em
suas próprias mãos a Sagrada Hóstia em um pedaço de carne, que
derramava abundante sangue sobre os corporais.
A
notícia do milagre espalhou-se rapidamente pela região. Informado de
todos os detalhes, o Papa mandou trazer as relíquias para Orvieto, com a
reverência e a solenidade devidas. E ele mesmo, acompanhado de
numerosos Cardeais e Bispos, saiu ao encontro da procissão formada para
conduzi-las à catedral.
Pouco depois, em 11 de agosto do mesmo ano, Urbano IV emitia a bula Transiturus de hoc mundo,
pela qual determinava a solene celebração da festa de Corpus Christi em
toda a Igreja. Uma afirmação contida no texto do documento deixava
entrever ainda um terceiro motivo que contribuíra para a promulgação da
mencionada festa no calendário litúrgico: "Ainda que renovemos todos
os dias na Missa a memória da instituição desse Sacramento, estimamos
todavia, conveniente que seja celebrada mais solenemente pelo menos uma
vez ao ano para confundir particularmente os hereges; pois, na
Quinta-Feira Santa a Igreja ocupa-se com a reconciliação dos penitentes,
a consagração do santo crisma, o lava-pés e muitas outras funções que
lhe impedem de voltar-se plenamente à veneração desse mistério".
Assim,
a solenidade do Santíssimo Corpo de Cristo nascia também para
contrarrestar a perniciosa influência de certas ideias heréticas que se
alastravam entre o povo, em detrimento da verdadeira Fé.
Já
no século XI, Berengário de Tours se opusera abertamente ao Mistério do
Altar, negando a transubstanciação e a presença real de Jesus Cristo em
Corpo, Sangue, Alma e Divindade nas sagradas espécies. Segundo ele, a
Eucaristia não passava de um pão bento, dotado de um simbolismo
especial. E em inícios do século XII, o heresiarca Tanquelmo espalhara
seus erros em Flandres, principalmente na cidade de Antuérpia, afirmando
que os Sacramentos, e sobretudo, a Santíssima Eucaristia, não possuíam
valor algum.
Embora
todas essas falsas doutrinas já estivessem condenadas pela Igreja, algo
de seus ecos nefandos ainda se faziam sentir pela Europa cristã. Assim,
Urbano IV não julgou supérfluo censurá-las publicamente, de modo a
tirar-lhes todo prestígio e penetração.
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